A LOIRA DA MATÃO
Recém-chegado ao Município de Nova
Londrina, noroeste do Estado do Paraná – minha cidade natal – eu fiquei
boquiaberto e curioso com o boato que corria de boca a boca: A loira fez mais
uma vítima! Coitado do caminhoneiro!
A notícia percorreu a região, sangrou fronteiras, ganhou repercussão nacional. Todo mundo queria saber: Quem foi dessa vez? Um falava: - Foi o Tamba do l3l3. Outro: - Foi o Caolho Caçambeiro. E muitos diziam: - “FOI O JAPA, CARRETEIRO; O NEGÃO, DO TANQUEIRO. ENFIM, NINGUÉM SABIA AO CERTO”.
A notícia percorreu a região, sangrou fronteiras, ganhou repercussão nacional. Todo mundo queria saber: Quem foi dessa vez? Um falava: - Foi o Tamba do l3l3. Outro: - Foi o Caolho Caçambeiro. E muitos diziam: - “FOI O JAPA, CARRETEIRO; O NEGÃO, DO TANQUEIRO. ENFIM, NINGUÉM SABIA AO CERTO”.
O incrível era, que, de jovens a velhos, todos comentavam alguma história sobre
a “Loira da Matão”. Comecei então a bisbilhotar o caso. Tornei-me um caçador
dessa história. Levei alguns apetrechos importantes para registrar minhas
entrevistas, tais como: um gravadorzinho de bolso, agenda e caneta.
Durante, aproximadamente, três meses, investiguei, conversando com os moradores
da Fazenda Matão, circunvizinhos, trabalhadores rurais e muitos caminhoneiros.
Muita gente foi enfática a me afirmar que essa história não passava de fofoca,
de boato mesmo, de história de caminhoneiro. Que era uma lenda. Por outro lado,
um batalhão de caminhoneiro, alguns moradores, donos e funcionários de pequenas
empresas – localizadas nas proximidades do local do medo – chegaram a me jurar
de pés juntos, que, há mais de cinquenta anos a loira vem aparecendo,
assombrando, perseguindo e aniquilando não só caminhoneiros, mas, também
ciclistas, motoqueiros, moradores e transeuntes. Diziam que a maioria das
vítimas tem vergonha de se expor, por “razões que a própria razão desconhece. ”
A lei do silêncio impera por algum mistério... Que, muitos acidentes estranhos
e inexplicáveis já aconteceram naquele trecho, onde “ela” aparece e pede
carona. Que, muitos religiosos de várias crenças realizam ali, missas, cultos,
passes espirituais e benzimentos. Que, o fato é assustador, sobrenatural, do
outro mundo mesmo.
Como
se montasse um quebra-cabeça, eu juntei algumas peças e desvendei a seguinte
história:
Na década de sessenta, um rico senhor americano comprou uma propriedade fazendo
divisa com a Fazenda Matão, município de Loanda– Estado do Paraná. Com sua
família veio morar nela. Tinha uma bela filha de dezessete anos: loira, cheia
de charme e muito mística. Algum tempo depois, ela conheceu um rapaz, o
verdadeiro amor de sua vida. Namoraram, noivaram, e marcaram a data do
casamento. Casaram-se num sábado. Dia de sol e de muita colheita... fizeram a
festa de matrimônio mais bela e requintada de que se tem conhecimento por
aquelas redondezas, até hoje. Depois dos comes e bebes, partiram, no instante
do adeus do astro-rei, felizes, repletos de amor, cúmplices da paixão, e
seguiram rumo ao doce sabor do sonho da lua-de-mel.
Ao sair da estrada vicinal, entrando na rodovia BR-376, no meio da Fazenda
Matão, o carro quebrou. Alguém parou para ajudá-los. Ofereceu ajuda e, sem
nenhum motivo, com uma chave de fenda em punho, desferiu um golpe certeiro no
peito do noivo, que caiu morto. A garota, ainda vestida de noiva, saiu correndo
gritando, pedindo socorro, desesperadamente, mas, foi tudo em vão. O assassino,
ao alcançá-la, imobilizou-a com um golpe de jiu-jítsu, e, ao amordaçá-la com
algodão, cometeu o mais bárbaro crime contra uma pessoa indefesa, estuprando a
garota covardemente. Não resistindo à brutal violência animalesca, naquele
local, faleceu. O maníaco eviscerado, friamente, como se nada tivesse
acontecido, juntou os corpos, e os enterrou numa vala, trezentos metros mata
adentro; desapareceu com o veículo dos noivos e sumiu, não deixando pistas.
Muito tempo depois, ao ser descoberta a sepultura do casal, e constatado
através de autópsia, o crime hediondo, o pai da noiva ofereceu, em recompensa,
uma fortuna em dinheiro para quem lhe trouxesse a cabeça do monstro homicida
vivo ou morto. Mas, até hoje ninguém, nem a polícia, o prendeu.
A partir desse crime trágico, a aparição da “Loira da Matão” tem sido uma
constante e um pesadelo assombroso em toda a região do noroeste paranaense.
Depois que se espalhou o boato sobre a aparição da “LOIRA FANTASMA”, a um
caminhoneiro, naquele trecho, num certo dia à noite, muitos caminhoneiros não
trafegam mais por ali ao anoitecer.
Por isso, ela ficou cognominada: “A LOIRA FANTASMA DOS CAMINHONEIROS”. O que
não a impediu de aparecer para inúmeras pessoas.
Relato de um caminhoneiro
Um caminhoneiro, que pediu para não ser identificado, jurou-me, por tudo o que
havia de mais sagrado, tê-la encontrado duas vezes, numa mesma noite. Já tinha
ouvido falar dela antes, porém, achava tudo uma lorota, uma balela, conversa
fiada; não cria na sua existência. Achava que era pura invenção do povo que não
tinha o que fazer que, inventava aquilo para amedrontar os caminhoneiros e os
furtadores de laranja à beira da estrada. Era um homem cético nesses assuntos
sobrenaturais. Acreditava que quem morria não voltava para perturbar ninguém.
Mas que, se, hoje, lhe falarem que um cachorro fala, um papagaio pensa e um
elefante toca piano, ele já não duvida de mais nada.
E
contou-me a seguinte história:
- Certo dia, eu peguei um frete – uma pequena mudança de Marilena a Paranavaí. Entre nove e dez horas da noite, justamente no trecho do pavor, no quilômetro cinquenta e quatro, um pneu do caminhão furou. Era sábado, noite de lua cheia... Bonita. Parei no acostamento e desci. Ao pôr os meus pés no chão, eu senti algo estranho, um arrepio esquisito. Olhei instantaneamente à mata que roncava em sono profundo. O barulho dos bichos noturnos e o chirriar da coruja ressoavam em eco de encanto, espanto e magia. A escuridão penetrava, furiosamente, o coração da relva virgem. Nunca tinha sentido medo de coisa alguma, no entanto, naquele momento, fiquei transfigurado, paralisado, congelado até a alma.
Ao perceber, por entre as folhagens um vulto que vagarosamente surgia e
ressurgia do nada. Seu espírito ia se materializando... Seus olhos eram
tristes, porém verdes e encantadores. Seu rosto, meigo como o de um anjo. Seus
cabelos, longos e cor-de-mel. De seu corpo umedecido, escultural, torneado como
o de uma musa inspiradora, pingavam gotículas de orvalho. No emaranhado de
cipós deslizava-se como uma pantera e vinha ao meu encontro iradamente. Senti-me
colado ao chão, fui tomado por uma síncope descomunal. Estático, não pude nem
correr, nem gritar. O instante de perigo foi mágico! Engoli a voz, fiquei com
os olhos esbugalhados. Meu subconsciente me revelou de supetão: “É a Loira da
Matão!”. Senti instintivamente que “ela” ia me pegar, e, sem titubear, apelei
urgentemente para o meu santo protetor, São Cristóvão. Supliquei-lhe e
implorei-lhe por socorro... Fiquei aliviado e maravilhado quando voltei em mim
e percebi que tinha sido protegido por ele, quando vi aquela alma vagante sumir
como um raio mata adentro.
Recuperado do susto, troquei o pneu
e pus o pé na estrada. Restabelecido, comecei a cantarolar músicas
sertanejas... Já havia andado mais ou menos uns cinco quilômetros, quando, de
repente, parei de cantar e pensei: “Aquilo foi uma miragem, um sonho, um
devaneio. Afinal, estou cansado, sem dormir desde ontem, vida de caminhoneiro
não é fácil! A gente começa a ver coisas estranhas. Até fantasma aparece!
”convenci-me que tinha cochilado... sonhado, tido uma alucinação, sei lá!
Coisas da insônia... quem sabe? ”.
Repentinamente, olhei na estrada e
vi uma linda mulher, loira, linda, daquelas de arrepiar até a alma! Acenava e
me pedia carona. Como bom cristão que sou, diminui a velocidade do meu
“garanhão”, pensei em parar e levá-la. Mas, ao me aproximar, lembrei-me da
miragem, do pesadelo, daquela coisa que tinha visto minutos antes, e, ainda
meio confuso, traumatizado, pisei fundo no acelerador e saí na disparada...
Juro que me esqueci nesse momento o meu lado caridoso. Nervoso, liguei o rádio,
acendi um cigarro e tentei não pensar naquilo.
Meu caro caçador de história, quase
morri de medo, quando olhei à minha direita e vi-a sentada ali, do meu lado, e,
sem saber o que fazer – e nem sei como ela entrou – comecei a orar e a rogar
para todos os santos. Mas, nada adiantava, ela continuava ali, como quem
desejasse se comunicar. Enfurecida, ela começou a se metamorfosear: seus olhos
começaram a lampejar; de seus ouvidos, nariz e boca brotavam algodão, muito
algodão ensanguentado; de seu corpo em erupção jorrava sangue por toda parte e
exalava um odor, um mau cheiro insuportável... Aos poucos foi se decompondo...
Era coisa d’outro mundo, cara! Eu fiquei desesperado, perdi o controle do
caminhão que no asfalto derrapava num e noutro acostamento, num ziguezague...
Eu vi a morte sentada ao meu lado, fiquei frente a frente com a feiura da
morte. Nunca vi nada tão horroroso em toda a minha vida. Sentindo que eu ia
morrer, vendo a morte de perto sentada ao meu lado, comecei a orar e a clamar
por Deus, em nome de Jesus Cristo Nosso Senhor, dizendo: Salve-me, senhor!
Salve-me, senhor! Sangue de Cristo tem poder! Perdoa os meus pecados! Eu
acredito! Eu acredito em Deus!...
E, o bicho, transfigurado, como
“fênix”, ressurgiu daquela coisa gosmenta, olhou pra mim, como quem me dissesse
por telepatia: Estou decepcionada. E, imediatamente, voou pela boleia do
caminhão, esvoaçante e, misteriosamente, desapareceu na escuridão.
Depois, segui minha viagem e confesso que, por ali, naquele trecho do medo, não passo ao anoitecer de jeito nenhum, nem que me pague uma fazenda de café, um caminhão de dinheiro, porque o bicho é feio, fede como gambá e é assustador... Deus que me livre!... Ninguém merece se deparar com aquela coisa doutro mundo.
O Motoqueiro
Eu mesmo fui testemunha ocular de um
momento atípico, inexplicável, e, até cômico, engraçado: Enquanto eu
entrevistava um borracheiro, por volta das dezoito horas daquele sábado, surgiu
como um furacão um motoqueiro e a sua acompanhante, ambos estavam de cabelos em
pé, trêmulos, com os olhos arregalados e assombrados... Não conseguiam
pronunciar uma palavra corretamente. Somente alguns instantes depois a mulher
parecendo um espantalho, disse:
- Há uns dois quilômetros atrás
fomos perseguidos por um ser estranho, que flutuava ao nosso lado, e quanto
mais o Caju pisava, corria com a moto, mais o vulto nos acompanhava e nos
seguia como um fogo esvoaçante. Nunca vi nada igual em toda a minha vida.
Pensei que fosse morrer!
O motoqueiro, sem graça – um negão
de quase dois metros de altura – recompôs a voz, e disse para o borracheiro:
- Cara, eu tô todo borrado, tô
podre... Cagado mesmo! O que era aquilo pelo amor de Deus! Jesus Cristo! Nunca
tinha visto uma assombração em toda a minha vida. Pensava que isso era coisa de
filme de ficção, sei lá!
Desengonçado,
cabisbaixo e resmungando muito, acrescentou, dizendo:
- Confesso, sou medroso pra caramba.
Tô muito envergonhado. Mas preciso do seu banheiro para me
limpar.
Depois do banho, agradeceu...
“E, com a sua garota seguiram para o bailão em Loanda”.
O velho borracheiro, assim que o
motoqueiro deitou o cabelo, me disse:
- Essa Loira já deu muito que falar,
eu já ouvi cada história sobre ela que até Deus duvida! Mas, eu nunca tinha me
deparado com um fato em que eu fizesse parte da história dela... Eu me sinto
neste momento um figurante. Mas, que o cara se defecou todo, ah, isso defecou!
O borracheiro riu muito... E, eu
também.
Fernandes,
Osmar Soares, 1961,
A
LOIRA DA MATÃO,
OSMAR
SOARES FERNANDES,
São
Paulo / Scortecci, 1ª edição: 1999
(JS2708-1000072011999)