sábado, 31 de janeiro de 2015

Aparição do Capeta

 


  

Introdução

 

Toda localidade tem suas histórias. Algumas são contadas para entreter, outras para assustar. Mas, em São Cipriano, uma lenda em particular marcou gerações e moldou o comportamento de seus habitantes. Em uma sexta-feira 13, três garotos deram vida ao capeta — a temida caveira maldita. O pânico se espalhou rapidamente pelo distrito. Até ateus subiram o tom e refletiram...

O que começou como uma simples travessura de garotos se transformou em um mistério que desafiava a lógica. O medo tomou conta das ruas, a fé foi reforçada, e, curiosamente, até a tranquilidade foi restaurada. Mas seria tudo apenas uma coincidência? Ou algo realmente espreitava nas sombras, esperando o momento certo para retornar?

O padre Bento, o investigador Cido e o delegado Clécio foram alguns dos protagonistas dessa história. Uns acreditavam no sobrenatural, outros duvidavam. Mas, acima de tudo, ninguém conseguia negar os acontecimentos estranhos que assombraram o distrito.

 

Capítulo 1 – A Travessura e a Temida Caveira Maldita

 

Era sexta-feira 13, uma noite escura, sem lua, sem estrelas, sem nada. Apenas o breu e o vento assobiando pelos becos estreitos de São Cipriano, um distrito esquecido no mapa do mundo. Os lampiões piscavam fraquinhos, como se também anunciassem o medo do que estava por vir. No terreno baldio ao lado da Igreja Católica, três moleques arteiros e endiabrados preparavam sua maior travessura – daquelas que entrariam para a história do lugar.

Com uma ideia diabólica na cabeça, faca cega em punho e dedos ágeis, os três garotos esculpiram em uma abóbora gigante uma caveira e deram vida ao capeta – a temida caveira maldita. Quando fincaram a criatura no topo de um velho toco seco e acenderam uma vela vermelha dentro dela, o que antes era apenas uma brincadeira se transformou em uma assombração. A luz tremeluzente projetava sombras macabras nas paredes da igrejinha de madeira, e o vento fazia a chama dançar, como se o próprio Satã soprasse ali, em uma festa diabólica vinda dos infernos.

A emboscada estava armada no lugar certo: bem na esquina por onde os fiéis passariam ao sair da missa das 19h30. E não deu outra. Assim que a porta da igreja se abriu e o povo começou a sair, os primeiros olhares se voltaram para o brilho sinistro e demoníaco da caveira do capeta. O pânico se espalhou rapidamente pela cidade. O silêncio foi rasgado por um grito:

— Valha-me Deus! É o cão!

O pânico se espalhou como fogo em palha seca. Velhas se benzendo apressadas, homens tropeçando nas próprias pernas, mulheres clamando por Nossa Senhora, crianças chorando em desespero. Alguns correram tanto que só conseguiram parar do outro lado da cidade, sem fôlego, sem noção do que acontecera. O diabo estava solto, e nada mais parecia seguro.

Enquanto a cidadezinha mergulhava no caos, os três capetinhas de carne e osso se contorciam de rir, escondidos na moita. Joãozinho, o nanico, chorava de tanto rir. Pedrinho, o gago, tentava gritar, mas só saía um "hahaha". Luquinha, o mala-sem-alça, se segurava para não se mijar. Mas a risada morreu no instante em que olharam para a rua e viram uma figura caída, imóvel no chão.

Os três se entreolharam, o sangue gelando nas veias. Joãozinho engoliu em seco antes de gritar:

— É a dona Julieta! Ela tá mortinha da silva! E agora, meu Deus?! Estamos lascados!

Pedrinho, o gago, arregalou os olhos, tentando conter o pavor que travava sua língua:

— Viiixeee, aaagooraaa desgraçou tuuuudo! Vooouuu deeeiiitaaar oooo caaabeeeloo!

Luquinha disse, apavorado:

— Cala a boca, gago infeliz! Vai anunciar pra cidade inteira, é?! Calma aí, seus frouxos! Ninguém viu nada, ninguém sabe de nada! A velha caiu dura de susto, e daí?! O problema é dela! Agora, vamos sumir com essa caveira antes que alguém apareça!

Como bichos assustados, estremecidos e com os cabelos arrepiados, os três se lançaram sobre a caveira demoníaca e a esconderam no meio do matagal. Depois, se escafederam na velocidade do diabo fugindo da cruz.

Mas não demorou para que a polícia chegasse ao local, iluminando a cena com lanternas tremulantes e luzes oscilantes. O alvoroço na cidade já havia se espalhado. Dona Julieta foi levada às pressas ao hospital. Quando despertou, ainda pálida e trêmula, agarrou o braço do médico e balbuciou, com os olhos esbugalhados:

— Meu Deus... onde estou? O que era aquilo?! Aqui é o Umbral ou o Purgatório? Preciso falar com o padre Bento! Eu vi o demônio em pessoa! Valha-me Deus! Credo em cruz, três vezes!

O médico e a enfermeira trocaram olhares cúmplices e, com um tom suave e tranquilizador, o doutor lhe disse:

— Dona Julieta, a senhora precisa se acalmar. Está na enfermaria do hospital, tudo bem. Às vezes, em pessoas da melhor idade, a mente pode pregar algumas peças, criar imagens que não existem... Coisas sobrenaturais, ilusões, muitas vezes causadas pelo cansaço ou pelo medo.

Enquanto aplicavam o calmante, a pobre mulher ainda balbuciou um último "Valha-me Deus..." antes de cair em um sono profundo.

Mas a cidade, essa não dormiu. A notícia se espalhou mais rápido que boato em festa de comadre: Dona Julieta havia batido as botas depois de encarar o próprio capeta!

Os três endiabrados, ao tomarem conhecimento do alvoroço, ficaram pálidos como fantasmas. O medo foi tão avassalador que cada um correu para casa e se encolheu debaixo da cama, suando frio, torcendo para que o diabo — ou a polícia — não aparecesse à porta.

O pai do Joãozinho comentou com a esposa, com um tom meio desconfiado:

— Bem, estão dizendo por aí que Dona Julieta viu o capeta e caiu dura! Falam que o Demo veio buscar ela pessoalmente. Com aquela língua afiada, não duvido nada... Amor, fica esperta, viu?

A esposa, sem paciência para o assunto, retrucou, já irritada:

— Para com essa bobagem, homem! Cuido da minha vida, não fico falando dos outros. Tenho coisa mais importante pra fazer!

O marido soltou uma risadinha marota, como quem não leva nada a sério, e seguiu para o trabalho.

 

Capítulo 2 – O investigador de polícia e o Mistério do Terreno Baldio

 

O investigador de polícia vasculhava o terreno baldio em busca de pistas quando, de repente, tropeçou em algo. Olhou para baixo e encontrou um pé de chinelo, tamanho trinta e três. Ele o pegou com seriedade, como se fosse a peça-chave de um grande mistério, e o levou rapidamente para a delegacia, com a sensação de que estava prestes a desvendar algo importante. — Senhor delegado, aqui está a prova do crime! — Anunciou, segurando o chinelo como se fosse um troféu.

Dr. Clécio, um sujeito cético e bem-humorado, olhou o objeto e caiu na gargalhada.

— Então quer dizer que o capeta perdeu um chinelo e foi direto pro inferno pulando num pé só? Kkkkk! — Riu tanto que quase se engasgou com a própria situação.

Depois, limpando uma lágrima do olho, completou:

— Esse capeta precisa ser enquadrado, Cido! Sua vó, Dona Julieta, quase partiu dessa pra melhor, e agora tem gente trancada dentro de casa de medo. São Cipriano virou um pandemônio! Pequeno no tamanho, mas cheio de problema de cidade grande. Se esse povo não tomar jeito, Deus ainda vai dar um jeito neles, igual fez com Sodoma e Gomorra!

O investigador apertou o chinelo nas mãos, refletindo consigo mesmo: "Vou pegar o desgraçado que fez isso com a minha vozinha. Ateu eu não sou, mas acreditar que isso foi obra do capeta já é demais para minha inteligência!"

Enquanto isso, o padre Bento, ao saber do alvoroço, decidiu investigar por conta própria. Com a lanterna em mãos, entrou no terreno baldio e vasculhou cada canto. Não demorou muito para encontrar a abóbora esfacelada e a vela, jogadas sob um pé de limão. Pegou a cera derretida entre os dedos, balançou a cabeça e murmurou:

— Eu sabia! Não tinha diabo nenhum nessa história... esse povo inventa cada uma! Perdoai-os, ó Deus! Povo de pouca fé.

 

Capítulo 3 – Medo e Fé: O Silêncio do Padre Bento

 

Na manhã seguinte, para a surpresa de todos, a Igreja Católica de São Cipriano estava mais cheia do que nunca. Os bancos, que costumavam ficar vazios ou com poucos fiéis, estavam abarrotados de pessoas, todas com rostos preocupados e olhares atentos. Não havia mais espaço para ninguém, e até os corredores foram tomados por aqueles que preferiram ficar de pé. Alguns até se agacharam no chão, formando pequenos grupos de oração, como se o medo e o pavor os tivessem levado a procurar uma redenção imediata.

A primeira missa do dia não parecia uma celebração comum. A atmosfera estava carregada de tensão, e as velas acesas ao redor da igreja tremeluziam, como se também estivessem temerosas. O povo rezava fervorosamente, como se o próprio inferno estivesse à porta, e o padre Bento percebeu que o dízimo tinha aumentado consideravelmente. Não eram mais as pequenas moedas de sempre, mas notas valiosíssimas, como se, no fundo, todos quisessem apaziguar uma possível fúria divina com um pequeno sacrifício.

Enquanto a missa acontecia, a tensão era palpável. O padre Bento, ao olhar para os rostos das pessoas, percebeu que aqueles que antes pareciam indiferentes agora estavam marcados pela ansiedade. Ele não podia ignorar aquilo. A história da "aparição do capeta" estava se espalhando rápido, e todos estavam em busca de algo para se agarrar, algo que os fizesse sentir seguros, afastando a sombra maligna que pairava sobre o distrito.

Com a cabeça cheia de pensamentos conflitantes, o padre Bento subiu ao altar. No fundo, uma passagem bíblica ecoava em sua mente: "Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para poderdes ficar firmes contra as ciladas do diabo. Porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, mas contra os principados e as potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestiais" (Efésios 6:11-12). Ele sabia que o verdadeiro inimigo não era um boato, nem a superstição popular, mas o mal que se manifesta de várias formas, muitas vezes invisível, mas sempre presente.

Foi nesse momento que uma memória o invadiu. Ele se lembrou de uma história bíblica em Números 22:28-35, sobre Balaão e sua jumenta. Balaão, um profeta que não entendia os planos de Deus, foi repreendido de maneira incomum: a própria jumenta que ele montava foi usada por Deus para falar com ele. A passagem diz: "Então o SENHOR fez a jumenta falar. 'O que eu lhe fiz para você me bater três vezes?', perguntou ela a Balaão. 'Você me fez de tolo!', gritou Balaão. 'Se eu tivesse uma espada, mataria você!' 'Mas eu sou a mesma jumenta que você montou a vida toda', disse ela. 'Alguma vez eu fiz algo parecido?' 'Não', respondeu Balaão. Então o SENHOR abriu os olhos de Balaão, e ele viu o anjo do SENHOR em pé no caminho, segurando a espada".

Deus usou a jumenta para corrigir Balaão, e aquela experiência estranha e surpreendente foi a maneira divina de chamar sua atenção. O padre Bento refletiu sobre a profundidade dessa história. Talvez, assim como Deus falou pela boca de uma jumenta para ensinar a Balaão, Ele estivesse falando ao povo de São Cipriano por meio de um evento inesperado: a travessura dos meninos, que, sem saber, haviam causado uma grande reflexão de fé no distrito. A aparição do capeta não era um simples capricho do destino, mas uma forma de Deus despertar os corações dos fiéis, levá-los a se arrepender e refletir sobre suas vidas.

O padre hesitou. Olhou para os rostos das pessoas, algumas com os olhos fechados, outras com as mãos juntas em oração, como se pedissem uma intervenção divina imediata. Pensou na reação de todos se mencionasse diretamente o capeta. O que aconteceria com sua autoridade? A verdade era que ele não sabia o que fazer. Pensando por um longo momento, o padre Bento optou pelo silêncio. Decidiu que, naquele dia, a oração seria mais importante do que qualquer palavra sua. No fundo, ele sabia que o medo do capeta tinha levado as pessoas a se aproximarem da fé, mas também sentia que algo mais estava por trás disso. Era como se a fé delas fosse moldada não apenas pelo amor divino, mas pela ameaça iminente de algo muito pior.

Enquanto o sermão prosseguia, ele falou sobre a importância da paz e do perdão, mas nunca tocou no assunto da aparição. No final da missa, as pessoas se levantaram com expressões aliviadas, como se o ato de rezar em conjunto tivesse dissipado uma parte do temor que as afligia. Saíram de lá com o coração mais leve, mas sabiam que o que as aguardava lá fora era um distrito ainda assombrado pelo medo e pela dúvida.

E assim, enquanto a Igreja Católica estava cheia, o padre Bento sabia que sua escolha de silêncio era temporária. Em algum momento, teria que enfrentar o que estava acontecendo. Mas não naquele dia. Não ainda.

 

Capítulo 4 – O Pacto Sombrio E O Salmo 91 Para Afastar O Mal

 

O pacto estava selado. Nenhum dos três abriria o bico, custasse o que custasse. A escuridão da noite parecia pesar sobre seus ombros, como se o próprio céu soubesse do que tinham feito. Luquinha, sempre o mais ousado, cruzou os braços e lançou um olhar determinado para os amigos.

— A velha não morreu… Só desmaiou com o susto. Hoje à tarde ela sai do hospital, vivinha da silva. Acabou. Caso encerrado.

Mas o tom de sua voz não convencia ninguém. Pedrinho, o gaguinho, arregalou os olhos e começou a suar frio e disparou:

— M-mas… a-a polícia e-está investigando! O q-qu-que fizemos éé crime… Dá cadeia! S-se eles desc-cobrirem que f-f-foi a ge-ge-gente… A c-c-cidade tooooda vai saaaaber! Nó-nó-nós vamos seeer liiinchaaadoos!

Joãozinho, o nanico, tremia. Sua voz mal saiu:

— Eu sou coroinha… Vou me confessar com o Padre Bento e contar tudo. Se meu pai descobrir, tô perdido! Ele vai me dar uma surra daquelas de deixar marca até à minha terceira geração! Deus me livre de ir preso!

Os outros dois se entreolharam, alarmados. Como um raio cortando a maldição da noite, suas vozes explodiram ao mesmo tempo:

— Você não tá nem doido! O padre vai matar a gente!

Joãozinho engoliu seco, o coração galopando no peito.

— Eu tô com medo...

O vento frio cortava a pele, como se a própria noite sussurrasse que estavam sendo observados. Mas ali, diante daquela encruzilhada, fizeram um juramento. Olharam-se nos olhos e prometeram: jamais contariam a ninguém. O pacto do silêncio estava feito. Levariam o segredo para o túmulo. Mas Joãozinho tinha um problema e disse imediatamente, quase sem querer:

— Perdi um pé de chinelo... Era presente do meu pai. Voltei lá na data pra procurar, mas não achei. A gente tem que achar esse chinelo logo!

Luquinha e Pedrinho, já de saída, deram de ombros, sem paciência para mais preocupações, como dissessem “O problema é seu, resolva-o!”.

— Deixa de frescura, Joãozinho! Esquece esse chinelo!

E sumiram na escuridão.

Enquanto isso, o investigador Cido, perspicaz como sempre, rodava a cidade com o chinelo na mão, batendo de porta em porta. Conhecia todo mundo, sabia que uma hora alguém reconheceria aquele calçado.

Na casa de Luquinha, sua mãe atendeu à porta. O investigador, exibindo o pé de chinelo como uma prova fatal, perguntou:

— A senhora, por acaso, deu falta de um chinelo tamanho trinta e três?

Luquinha, escondido atrás da cortina, sentiu o coração disparar. O suor escorria-lhe pela testa. Se sua mãe confirmasse que aquele chinelo pertencia a alguém da casa, o pacto estaria desfeito, e ele, Pedrinho e Joãozinho estariam em maus lençóis.

A mulher olhou atentamente para o calçado, coçou a cabeça e respondeu:

— Não, seu Cido, aqui em casa ninguém perdeu chinelo, não.

Luquinha sentiu as pernas bambearem de alívio.

O investigador franziu a testa, desconfiado. Olhou ao redor, observando cada detalhe da casa, como se esperasse pegar alguém no flagra. Então, suspirou e agradeceu:

— Certo... se lembrar de algo, me avise.

Quando ele se afastou, Luquinha soltou a respiração que nem sabia estar prendendo. Escapara por um triz. Mas sabia que aquela história ainda não tinha acabado... Ele reuniu o bando imediatamente, na casa de Joãozinho.

— Vamos roubar aquele pé de chinelo do Cido hoje à noite. Ele sempre vai jogar no Tunguete. Vamos aproveitar esse momento para ir até sua casa e pegar o chinelo. Não tem outro jeito. Ou fazemos isso, ou esse sujeito vai descobrir tudo.

O silêncio que se seguiu era tão denso que parecia ter peso. Pedrinho e Joãozinho se entreolharam, sentindo o estômago revirar. O pacto estava ameaçado. E se fossem pegos? De repente, um som cortou a noite. Três batidas secas na porta. TOC. TOC. TOC.

Os garotos prenderam a respiração. Nenhum deles havia chamado ninguém. Luquinha engoliu em seco, sentindo um arrepio percorrer sua espinha. Com passos hesitantes, aproximou-se da porta, o coração martelando no peito.

— Quem é?

Sua voz saiu mais fraca do que gostaria. Do lado de fora: o Silêncio. Então, uma voz rouca, quase um sussurro, respondeu do outro lado:

— Eu sei o que vocês fizeram.

Os garotos se abraçaram em círculo e, apavorados, começaram a rezar:

"Aquele que se refugia no esconderijo do Altíssimo encontrará descanso sob a sombra do Onipotente. Direi ao Senhor: Tu és o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e em Ti confiarei. Pois Ele nos livrará dos perigos ocultos e das trevas que nos cercam. Com Suas asas, nos cobrirá, e em Seu abraço encontraremos proteção. Mil cairão ao nosso lado, dez mil à nossa direita, mas nada nos atingirá. O Senhor enviará Seus anjos para nos guardar, e sob Sua vigilância, seguiremos sem medo".

Repetiram cada verso do Salmo 91 com fervor, os olhos apertados, o corpo trêmulo. Aos poucos, o ar pareceu mudar. O peso invisível que os oprimia desapareceu. Quando abriram os olhos, a presença sombria já não estava mais lá. Mas o medo... ah, esse continuava os observando.

Ainda trêmulos, os garotos se olharam em silêncio, compartilhando um pacto que ia além das palavras. Era hora de se separarem por aquela noite. Com passos vacilantes, despediram-se rapidamente, cada um seguindo seu caminho sob a lua pálida, sabendo que o destino ainda reservava surpresas. O Pacto da Caveira continuava de pé. Mas até quando?

 

 

Capítulo 5 – O Enigma da Prova Secreta

 

A cidade ainda murmurava sobre o ocorrido, e o peso da noite pairava sobre os ombros de quem sabia demais. O delegado, sempre atento e meticuloso, dirigiu-se à igreja logo após a missa. O silêncio sagrado contrastava com a inquietação que trazia consigo. Encontrou o Padre Bento no altar, e, sem rodeios, anunciou:

— Padre, meu investigador tem uma prova cabal contra o malfeitor. Creio que, dentro de poucas horas, iremos elucidar o caso.

O olhar do pároco estreitou-se, curioso e perspicaz:

— Doutor, que prova é essa?

O delegado ajeitou o chapéu e cruzou os braços, sua expressão indecifrável:

— Respeito-lhe demasiadamente, reverendo, mas isso é segredo de justiça. Não posso dizer de jeito nenhum.

Padre Bento inclinou ligeiramente a cabeça, medindo as palavras:

— Mas, meu filho, eu sou o pároco. Pode me contar, vou guardar segredo. Quantas vezes você já se confessou comigo?!

O delegado esboçou um sorriso de canto, mas permaneceu firme:

— Padre Bento, isso não é um pecado, é segredo profissional.

O padre suspirou, cruzando as mãos sobre o peito como quem pondera um sermão:

— Meu filho, eu lhe vi nascer, batizei-o, crismei-o. Você foi meu coroinha! Vai ter coragem de me negar isso? Conta-me logo que prova é essa!

O delegado ergueu a sobrancelha, mantendo-se inabalável:

— Conto não! Não posso! O senhor pode revelar as confissões dos fiéis?

Padre Bento estufou o peito, como se a questão fosse quase ofensiva:

— Claro que não! Jamais violarei o segredo do confessionário. Exerço minha batina e a honro com a fé que Deus me confiou, obedecendo piamente ao Código de Direito Canônico. O cânon 983 é claro: "O sigilo sacramental é inviolável; por isso é absolutamente ilícito que o confessor descubra o penitente por palavras ou de qualquer outro modo e por qualquer causa". Conheço meus direitos e deveres diante de Deus e dos homens.

O delegado sorriu de leve, mas sua postura seguia inflexível:

— Pois eu também não posso revelar essa prova. Sou o homem da justiça. Não posso trair a confiança do meu investigador nem desrespeitar a lei. Se o fizesse, estaria cometendo um crime. Assim como a Igreja protege seus fiéis, a lei civil protege seus cidadãos.  

O padre estudou o rosto do delegado por longos segundos, enquanto o cheiro de incenso ainda pairava no ar. O jogo de segredos estava lançado. Nenhum dos dois podia quebrar o código que os regia — um pelas leis da Igreja, o outro pelas leis dos homens. E ainda assim, o destino da cidade pendia sobre um fio. A verdade... essa ainda espreitava nas sombras, esperando o momento certo para emergir e ser desvendada. Mas a quem interessa ver a verdade vir à tona?

 

Capítulo 6 - Sombras da Desconfiança

 

O delegado saiu da igreja com o olhar carregado de incertezas. Algo não fazia sentido. Por que tanto interesse do padre naquela prova? Por que insistira tanto? Conhecia bem o Padre Bento, e aquela conversa lhe deixara uma sensação amarga na boca. A experiência lhe ensinara que, quando um religioso queria saber demais, ou era pela verdade, ou para preservar alguém. Esconder a verdade nunca fora tarefa para um homem de fé. Mas o que acontecia ali estava além do comum.

Enquanto isso, Paulinho viu seu filho descalço e reclamou:

— Joãozinho, cadê seu chinelo? Já te dei um chinelo de presente para não te ver descalço. Não ande assim, menino! Vá calçá-lo agora!

Joãozinho correu até a casa do amigo e pediu um chinelo emprestado. Carlos hesitou, mas acabou cedendo:

— Mas tem que me devolver logo, senão meu pai me dá uma surra também!

Pedrinho, muito religioso, resolveu se confessar com o padre naquele dia. Contou tudo, tremendo de nervoso, e admitiu que estava com medo de o investigador descobrir a verdade, pois seu amigo havia perdido um pé de chinelo. Mas havia algo mais na história que Pedrinho não ousara revelar — uma sensação estranha que o havia consumido desde que o incidente aconteceu.

O Padre Bento pensou: "Mas Cido é ateu... Tenho que calar sua boca de uma vez por todas". Foi então que arquitetou um plano, um plano que não deixava espaço para falhas, e mandou seu sacristão chamá-lo com urgência.

Rubens, o puxa-saco, foi até a casa do investigador e lhe disse:

— Cido, o Padre Bento quer vê-lo agora, já! Ele disse pra você ir lá correndo, imediatamente!

Cido, que saboreava um gole de café amargo, estreitou os olhos e repousou a xícara devagar. A urgência da mensagem lhe soava estranha, mas um calafrio subiu por sua espinha.

— O que diabos será que o padre quer comigo? Nunca fui ligado à Igreja...

— Não fale assim, rapaz! Deus é tudo, e tudo é amor. O padre não tem nada de diabo. Vai logo e saberá do que se trata. Quando o padre chama, é como se fosse Deus... Vá logo!

Cido respirou fundo. Aquelas palavras soaram vazias, mas ele não podia ignorá-las. Algo no ar, como um pressentimento, o empurrava para o desconhecido. Algo não estava certo. Ele não entendia por que, mas sentia uma sombra se aproximando, algo que se arrastava nas frestas da realidade, esperando por ele. Por fim, bufou, pegou o paletó e saiu.

A noite desceu lentamente sobre o distrito, mais escura do que o normal. As ruas estavam vazias, e o som dos seus passos parecia ecoar de forma estranha, como se o espaço ao seu redor estivesse distorcido. No caminho até a Igreja, um calafrio percorreu sua espinha. As sombras nas calçadas pareciam mais densas, mais profundas. O vento, que antes era leve, agora soprava com um murmúrio quase inaudível, como se sussurrasse palavras em línguas espirituais.

A igreja à frente parecia mais sombria do que nunca, seus portões, meio entreabertos, como se convidasse Cido a entrar em um lugar onde o tempo e o espaço perdiam o sentido. Algo dentro da Igreja parecia estar esperando por ele — e não era o padre Bento.

Ele entrou, o ar dentro da sacristia estava pesado, quase palpável, e o som de seus passos ecoava de forma distorcida. No altar, uma vela tremulava, projetando sombras distorcidas nas paredes. Mas o que realmente o fez parar foi o que viu à frente — Padre Bento estava de costas para ele, sua figura envolta em um manto negro, o semblante incomum, como se algo o tivesse possuído.

Cido não pôde evitar o calafrio que lhe percorreu a coluna vertebral. Ele sabia que aquele encontro não seria apenas uma conversa sobre um chinelo perdido. Algo mais estava em jogo, algo muito maior do que ele poderia compreender. Uma sensação de perigo iminente tomou conta dele, como se as paredes da igreja, que antes pareciam sólidas, agora estivessem prestes a desabar sobre ele.

O que o aguardava ali, na escuridão da Igreja, seria apenas o começo. E ele não poderia mais voltar atrás.

 

Capítulo 7 – O Capeta Está Fazendo Tocaia no Distrito de São Cipriano

 

A notícia corria boca a boca, como rastilho de pólvora, como fogo em mato seco: o Diabo apareceu no Distrito de São Cipriano!

Tudo começou na saída da missa das sete e meia. O povo se dispersava pela praça quando Dona Julieta caiu dura no chão. O terço escapou de suas mãos, e seus olhos se reviraram para dentro da cabeça.

Gritaram por socorro, chamaram um enfermeiro da cidade. Quando ela acordou no hospital, a única coisa que conseguia dizer, entre soluços e tremores, era:

— O Capeta... Ele caiu do céu!

Com o corpo ainda fraco, foi direto para a igreja. Não podia esperar. Precisava falar com o Padre Bento.

No Confessionário

Padre Bento sentiu um arrepio ao ver a rezadeira entrar com o olhar esgazeado. Ela se ajoelhou, as mãos crispadas no terço, e disparou:

— Padre, eu vi o Demônio! Ele desceu dos céus, mas não era anjo! Era uma coisa horrenda, feia de um jeito que palavra nenhuma explica!

Ela respirou fundo e fez o sinal da cruz. O suor descia pela testa, a voz embargada de quem viu o próprio inferno de perto.

— Parecia uma caveira viva, com um fogo ao redor que não queimava, mas dava medo! Eu pensei que ia morrer ali, padre! Eu vi os olhos dele... profundos, escuros... não era coisa desse mundo!

Padre Bento pigarreou, tentando manter a compostura, mas algo naquilo lhe incomodava mais do que deveria. Algo dentro dele dizia que Dona Julieta não estava errada.

— Tem certeza do que viu, filha? — Perguntou, escondendo a tensão na voz.

— Certeza como sei rezar a Ave-Maria de olhos fechados! E se ele tá aqui, é porque nossa fé tá fraca! Isso é um aviso, padre! Um sinal do céu!

Ela apertou o terço com força e balançou a cabeça, convicta.

— Já preparei uma novena. Vamos começar amanhã cedo. Precisamos expulsar essa coisa daqui!

Padre Bento fechou os olhos por um instante. O peso daquelas palavras não era fácil de carregar. Ele sabia que precisava agir.

Mas no fundo, algo o corroía.

E se a aparição não fosse só para testar a fé dos outros?

E se fosse um recado direto para ele?

A Cidade em Pânico

O boato se espalhou em questão de horas. Do comércio às fazendas, dos botecos às encruzilhadas, todos falavam da mesma coisa.

— O Diabo pousou aqui no Distrito de São Cipriano!

O medo tomou conta. Até os ateus começaram a rezar.

As igrejas protestantes organizaram cultos o dia todo. As velas no Cruzeiro do cemitério nunca se apagavam, e os despachos nas encruzilhadas se multiplicaram da noite para o dia.

Nunca se viu tanta gente comprando terço, escapulário e medalha de santo.

No boteco, um velho bêbado, Tonho das Éguas, soltou uma gargalhada e disse:

— Esse diabo fez foi bem! Agora a cidade tá fervendo! Até a véia fofoqueira parou de falar mal dos outros! Kkkkk!

Mas quem tinha fé não ria.

Naquela mesma noite, um pastor abriu a Bíblia e leu em voz alta:

— O Senhor perguntou a Satanás: ‘De onde você veio?’

O templo ficou em silêncio. Ninguém sequer respirava.

— Satanás respondeu: ‘De perambular pela terra e passear por ela’. (Jó 1:7)

As velas da Igreja tremeluziram sozinhas. Os cachorros começaram a uivar na rua. O vento soprou forte, derrubando uma árvore próxima da Igreja. Os fiéis tremeram piedosamente, agarrando suas Bíblias e sussurrando orações apressadas, e se ajoelharam, clamando a Deus: “Deus nos salva!”. Enquanto um fervoroso crente, tomado pelo Espírito, tremia e apontava para a porta da Igreja, sua voz embargada misturava pavor e fé, balbuciando:

— Eu vi! Eu vi com estes olhos! Ele estava aqui! — É o Demônio de carne e osso!

Na praça, uma sombra se moveu, longa e disforme, deslizando entre os postes de luz fraca.

Alguém no meio do distrito viu algo.

Mas quem teve coragem de olhar por mais de um segundo jura, até hoje, que não foi apenas uma visão. Foi um aviso. O Cão estava solto.

Então, um estrondo veio do lado de fora. Algo bateu contra as janelas da igreja, fazendo o vidro vibrar. Um cheiro de enxofre se espalhou no ar. E quando o relógio bateu meia-noite, um grito rasgou a escuridão – longo, lancinante, não humano.

As portas do templo rangeram sozinhas. Um vento gélido percorreu o salão. As chamas das velas se curvaram todas na mesma direção, como se algo invisível passasse por ali.

E então, o silêncio. Um silêncio sepulcral, profundo, opressor. Até que, do lado de fora, passos pesados ecoaram na terra molhada. O Distrito de São Cipriano segurou a respiração. O desespero estava só começando.

 

Capítulo 8 – O Padre e o Investigador

 

Enquanto isso, o investigador chegou à Casa Paroquial e foi imediatamente atendido pelo Padre, que o levou ao seu escritório e lhe disse em tom suplicante:

— Meu filho, eu lhe peço encarecidamente que pare com a investigação sobre a aparição do Capeta.

— Padre, o senhor está me pedindo algo que não posso atender. E o senhor também não pode atrapalhar a investigação! Isso é crime.

— Por quê, meu filho?

— Padre, eu quero pegar o desgraçado que fez isso com a minha vó. Ela quase bateu as botas! Tenho certeza de que isso não tem nada a ver com coisa do outro mundo. Foi coisa de moleque, de vândalo... Brincadeira de mau gosto! Se não fizermos alguma coisa para punir o responsável, ainda vamos perder um ente querido. Esse cão tem que ser preso! O senhor não acha?

— Meu filho, nem tudo é o que parece. Deus tem desígnios que só pertencem a Ele. Veja o movimento da nossa cidade! O povo voltou à Igreja, voltou a ter medo dos castigos de Deus. Isso vai fazer a criminalidade zerar. Nunca se viu tanta reza por aqui. O povo voltou a temer a Deus. As crianças voltaram para o catecismo. O fervor da fé tomou conta da nossa cidade! Nunca vi você na missa. Dizem por aí que é ateu... Mas pare com essa investigação, pelo amor de Deus!

— Padre Bento, eu sou agnóstico... E não estou entendendo! O que tem uma coisa a ver com a outra? A autoridade policial tem que fazer o seu trabalho, e é o que estou fazendo. Não vou parar enquanto não pegar o meliante que fez isso.

— Meu filho, eu sei que você é um exímio investigador, mas essa história não pode ir adiante. Pare de investigar! Essa situação acabou fazendo um milagre por aqui. O povo voltou a ter Deus no coração. Isso não é bom?

— Padre, eu acho que o senhor está sabendo demais. Já descobriu a verdade?

— Vieram me dizer que você anda perguntando de casa em casa se alguém deu falta de um pé de chinelo.

— É verdade! Eu achei um pé de chinelo novinho em folha naquele matagal, onde dizem ter visto o Capeta. Vi muitos pisados por lá... De pés pequenos. E cheguei à conclusão de que há mais de um envolvido nessa tramoia. Padre, eu vou achar o criminoso que quase matou a minha vó, custe o que custar!

O padre franziu a testa várias vezes, irritado e pensou: “Vou ter que falar com o superior desse traste e pedir para que o transfira daqui... Para lá onde o diabo perdeu as botas! Vou falar com o prefeito Pé-de-Boi".

 

Capitulo 9 – O Delegado Assume Investigação

 

O investigador foi-se embora e não hesitou em relatar ao delegado sua visita à casa do padre:

— Doutor, estou vindo da casa do padre.

— Que diabos você foi fazer lá?

— Ele mandou me chamar... estranhei, mas... O senhor sabe, padre é padre, enfim.

— E o que a Igreja queria contigo?

— Só faltou se ajoelhar pra mim, doutor. Implorou para eu parar com as investigações sobre a aparição do Capeta.

O delegado coçou os poucos fios de cabelo da cabeça e pensou: “Aí tem coisa!”. Em seguida, disse a Cido:

— Você me traga o pé de chinelo e me entregue ainda hoje.

— Doutor, ele está aqui, na minha mochila... Pega!

— Então, essa é a prova do crime? Pois é, cabo. A partir de hoje, essa investigação é minha. Você está fora desse caso. Vai cuidar de descobrir quem roubou o jumento do Zé Galinha, que ele está me enchendo o saco, e até hoje você não descobriu nada.

O investigador de polícia obedeceu a seu superior e saiu à procura do ladrão.

Cinco dias depois, o doutor Clécio foi até a casa paroquial e disse ao padre Bento:

— Padre, tenho a prova do crime aqui em minhas mãos e já descobri tudo. Vou prender o bando que fez isso.

— Doutor delegado, o senhor tem o quê em mãos?

— O pé de chinelo.

— Pé de chinelo?... O que isso tem a ver com a aparição do capeta?

— Tem tudo a ver, padre! Essa é a prova de que não existe capeta nenhum. Foi armação de moleques! Dona Julieta quase morreu, e tem gente que ainda está sob efeito de calmantes... não é justo! Esse crime não pode ficar impune! O senhor entende, né? Vou prendê-los ainda hoje.

— Esse chinelo não prova nada, delegado. Qualquer um pode ter ido àquele matagal e o esquecido. Todo moleque gosta de brincar em terreno baldio.

— Será, padre?

— Claro, delegado! Cuidado para não incriminar inocentes, porque, nesse caso, o criminoso será o senhor... e isso, Deus não perdoa!

— Padre, o senhor está muito interessado no encerramento dessa investigação... por quê?

— Pense bem, doutor. Depois que viram o capeta por aqui, a cidade melhorou muito. Todo mundo passou a ir à Igreja, até o roubo de galinhas parou. As missas estão lotadas. Nunca se vendeu tanto produto religioso como agora. Pense no sossego que nossa cidade vive hoje. A calmaria tomou conta de tudo.

— É... Padre Bento, pensando por esse lado, o senhor está coberto de razão. Minha delegacia virou um deserto. Nem um B.O., nem uma briga de casal. Nunca vi tanta paz no município.

— Então, pra quê elucidar esse episódio? Deixa o povo pensar que o diabo anda solto por aqui... Louco pra dar o bote!

— Mas, padre Bento... O capeta já não anda por todo canto do mundo, doido para tomar conta da nossa alma?

— Sim. Mas essa já é outra história.

O delegado entregou o pé de chinelo ao padre e deu o caso por encerrado. O padre chamou Joãozinho, entregou-lhe o chinelo e disse:

— Vê se não o perde mais...

Os três capetinhas voltaram a participar assiduamente das missas e a ajudar o padre no catecismo. E toda vez que o povo fraquejava na fé, desanimava na crença, deixava de ir à missa, aos cultos, e a criminalidade aumentava... a aparição do capeta era certa.

 

Capítulo 10 – Ele voltou...

 

O tempo passou, e a história do capeta tornou-se lenda em Vila do Cruzeiro. Os anciãos narravam os eventos com um misto de terror e nostalgia, enquanto os comerciantes e líderes religiosos recordavam os dias em que o medo e a fé caminhavam lado a lado, trazendo movimento à cidade. Mas poucos acreditavam que aquilo poderia acontecer novamente.

Até que, em uma noite abafada de lua cheia, o impossível aconteceu.

Um andarilho seguia pela estrada poeirenta quando seus passos vacilaram. Ele sentiu um arrepio gelado subir pela espinha e, ao erguer os olhos, viu uma figura encapuzada à beira do matagal. Os olhos da criatura brilhavam como brasas no escuro. O viajante prendeu a respiração e, antes que pudesse dar um passo para trás, os sinos da igreja começaram a dobrar sozinhos. O vento uivou pelas ruas desertas, e uma sombra colossal se projetou contra as fachadas das casas.

Zé das Mulas, um morador antigo, desabou na calçada ao testemunhar a cena. Seu corpo tremia em choque, os olhos arregalados fixos na escuridão. O medo de outrora ressurgia, e sua boca se abriu num grito sufocado.

No interior da igreja, o padre Bento foi encontrado ajoelhado diante do altar. Seus dedos crispavam-se sobre o terço, e seu olhar estava cravado no crucifixo como se buscasse uma resposta divina. O sacristão se aproximou, hesitante, e tocou-lhe o ombro.

— Padre? Está tudo bem? — perguntou, a voz trêmula.

O velho sacerdote apenas murmurou, num fio de voz quase sepulcral:

— Ele voltou...

Na delegacia, o telefone tocou estridente no meio da madrugada. O velho Cido, ainda meio sonolento, atendeu sem pressa. Mas a voz do outro lado da linha o fez despertar num sobressalto.

 

— Doutor Clécio, venha rápido! — arfou o interlocutor. — O capeta está à solta outra vez!

A cidade acordou em sobressalto. As janelas se abriram, as portas foram trancadas às pressas. Os cães latiam desesperados, uivando para um mal invisível. O vento, gélido e cortante, varria as ruas, trazendo consigo um cheiro acre, sulfuroso. Algo despertava na escuridão.

E então, um som que ninguém jamais esqueceria preencheu o ar: uma risada grave e rouca, que ecoava de todas as direções ao mesmo tempo. Era um riso que não pertencia a este mundo, reverberando nas paredes das casas, nas esquinas desertas, nos becos silenciosos.

Na praça, uma sombra se dissolveu na névoa, sumindo tão rápido quanto surgira. Mas sua presença ficou, densa e sufocante. O medo voltou a se entranhar nos corações dos moradores.

E todos compreenderam a terrível verdade.

O capeta jamais se foi.

Ele apenas esperou o momento certo para voltar. O povo havia esfriado o coração, perdido a fé, e a bagunça daquele Distrito era o motivo de seu retorno. A população entendeu o recado e voltou rapidamente aos bons costumes e, com a Bíblia na mão, seguiu o rumo do céu, à Igreja, e a calmaria reinou novamente.

Mas os olhos divinos dos Anjos de Deus permaneciam atentos. Pois o chifrudo não desiste nunca. Ele ronda, à espreita, faminto por almas que se desviam do caminho. Sua sede é insaciável, e seu desejo é levar os pecadores para seu lar vulcânico, onde as chamas nunca se apagam. Assim, enquanto o povo orar e se mantiver vigilante, a paz reinará, e disso, todos são conscientes. Basta um deslize, um desvio do caminho da luz, para que a coisa ruim ataque novamente. No silêncio da noite ou à luz do dia, o inferno sempre abrirá sua chaminé a seu chamado.

 

Capítulo 11 - O Último Pedido do Investigador

 

O Distrito de São Cipriano dormia sob a luz pálida da lua quando um sussurro gelado percorreu as ruas vazias. No matagal, onde tudo começou, uma silhueta se movia entre as árvores retorcidas. O vento assobiava, trazendo consigo um murmúrio indecifrável, como se a própria noite carregasse segredos que jamais deveriam ser ouvidos.

Na delegacia, Cido, o investigador, tentava ignorar os calafrios que lhe percorriam a espinha. Nunca acreditou em demônios, espíritos ou qualquer coisa além do que podia ver e provar… Mas naquela noite, algo o fez duvidar. Os sinos da igreja começaram a dobrar sozinhos. O telefone tocou, e, ao atender, uma voz rouca e desconhecida sussurrou:

— Ainda me procura, Cido?

Seu sangue gelou. Tentou responder, mas a linha caiu. Um arrepio percorria-lhe o corpo, e uma lembrança antiga ecoou em sua mente: “Se duvidar demais, ele pode vir te provar o contrário”.

O medo tomou conta dele. Sem pensar, pegou uma vela, ajoelhou-se no chão da delegacia e murmurou uma prece atropelada, gaguejando palavras esquecidas. Mas não era suficiente. Ele precisava de algo mais forte.

Minutos depois, a cena era surreal.

Lá estava Cido, o cético, o racional, o destemido investigador… ajoelhado diante do Cruzeirinho do cemitério, com os braços erguidos ao céu, pagando uma promessa que acabara de fazer.

— Meu Deus, me livra desse encosto! Eu prometo… Eu prometo ir à missa todo domingo! Juro que nunca mais como carne na Sexta-feira Santa! Nunca mais duvidarei da existência do capeta… mas, por favor, não deixa ele me visitar!

O vento soprou forte, quase apagando a vela que tremulava à sua frente.

Então, ele ouviu... Atrás dele, um arrastar de pés sobre a terra seca. Seus olhos se arregalaram, seu coração disparou. Não queria olhar… mas a curiosidade e o terror o dominaram. Lentamente, virou a cabeça. E viu. Uma sombra escura, encapuzada, imóvel, a poucos metros de distância.

Cido sentiu o desespero subir pela garganta. Sem pensar, arrancou a vela do chão e saiu correndo cemitério adentro, tropeçando nos túmulos, sem se importar para onde ia. Atrás dele, a sombra continuava imóvel. Até que a lua saiu de trás das nuvens… e revelou o rosto de Padre Bento. O velho sacerdote sorriu calmamente, pegou a vela caída no chão e apagou a chama com um sopro.

Naquela noite, um grito assustado ecoou pelo cemitério.

No dia seguinte, ninguém mais viu Cido no Distrito de São Cipriano. Alguns dizem que pediu transferência, outros juram que fugiu sem deixar rastro. Há quem afirme que o viram entrar correndo na Igreja e se trancar lá dentro, jurando nunca mais sair.

Mas uma coisa era certa: o capeta jamais o visitou. Porque ele já tinha aprendido sua lição. E, como sempre, o Distrito voltou a dormir em paz… Mas a paz no Distrito de São Cipriano nunca era eterna. O medo se dissipava com o tempo, a fé esmorecia, os costumes se afrouxavam… e então, a sombra da morte e a caveira temida retornavam. Porque o mal não precisa de convite. Basta uma brecha, um vacilo, um coração descrente… E o inferno sempre encontra seu caminho de volta, e nunca fecha suas portas. Ele apenas espera.

Portanto, ore e vigie sua alma, pois em Deus está o alimento da salvação e da vida.

"O Senhor é o meu pastor; de nada terei falta. Em verdes pastagens me faz repousar e me conduz a águas tranquilas; ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam". — Salmo 23:1, 2, 4.

 Conclusão

No Distrito de São Cipriano, o medo tornou-se a bússola da fé. A lenda do capeta nunca desapareceu — ela apenas sussurra pelas frestas da noite, esperando uma brecha para se infiltrar. Os mais velhos continuam a contar a história, alertando os mais jovens, enquanto os céticos riem e ignoram. Mas ignorar nunca significou estar a salvo.

Padre Bento se foi. O investigador Cido sumiu sem deixar rastros. O delegado Clécio aprendeu que certas perguntas nunca devem ser feitas. E os três garotos que um dia duvidaram jamais foram os mesmos. O horror que presenciaram os moldou. Tornaram-se homens de fé, obedientes a Deus, fervorosos em suas orações — como se soubessem que a qualquer momento... algo poderia voltar.

E no silêncio das madrugadas, quando os sinos da igreja rangem sozinhos e o vento carrega murmúrios ininteligíveis, alguém sempre se pergunta: “Será que ele realmente se foi? Ou apenas espera... pacientemente... que alguém duvide outra vez?”. Porque em São Cipriano, o medo não é apenas uma lembrança. É um aviso. Por enquanto.


FERNANDES, Prof. Osmar Soares. Aparição do capeta. Recanto das Letras, 07 set. 2009. Disponível em: https://www.recantodasletras.com.br/contoscotidianos/1797659. Acesso em: 28 fev. 2025.


Um comentário:

  1. O médico e a enfermeira diziam para ela ficar calma porque na idade dela era normal ver coisa que não existe... Deram-lhe um calmante e a fizeram dormir.

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