Direitos autorais:
Registrado pela Fundação Biblioteca Nacional/RJ
Ministério da Cultura
N° Registro:191.181, Livro 327, folha 337
A Loira da Matão (72 páginas)
1ª edição 1999 - Editora Scortecci/SP
Autor - Osmar Soares Fernandes
Recém-chegado ao Município de Nova Londrina, noroeste do Estado do Paraná –
minha cidade natal – eu fiquei boquiaberto e curioso com o boato que corria de
boca a boca: A loira fez mais uma vítima! Coitado do caminhoneiro!
A notícia percorreu a
região, sangrou fronteiras, ganhou repercussão nacional. Todo mundo queria
saber: Quem foi dessa vez? Um falava: - Foi o Tamba do l3l3. Outro: - Foi o
Caolho Caçambeiro. E muitos diziam: - “FOI O JAPA, CARRETEIRO; O NEGÃO, DO
TANQUEIRO. ENFIM, NINGUÉM SABIA AO CERTO”.
O incrível era, que, de jovens a velhos, todos comentavam alguma história sobre
a “Loira da Matão”. Comecei então a bisbilhotar o caso. Tornei-me um caçador
dessa história. Levei alguns apetrechos importantes para registrar minhas
entrevistas, tais como: um gravadorzinho de bolso, agenda e caneta.
Durante, aproximadamente, três meses, investiguei, conversando com os moradores
da Fazenda Matão, circunvizinhos, trabalhadores rurais e muitos caminhoneiros.
Muita gente foi enfática a me afirmar que essa história não passava de fofoca,
de boato mesmo, de história de caminhoneiro. Que era uma lenda. Por outro lado,
um batalhão de caminhoneiro, alguns moradores, donos e funcionários de pequenas
empresas – localizadas nas proximidades do local do medo – chegaram a me jurar
de pés juntos, que, há mais de cinquenta anos a loira vem aparecendo,
assombrando, perseguindo e aniquilando não só caminhoneiros, mas, também
ciclistas, motoqueiros, moradores e transeuntes. Diziam que a maioria das
vítimas tem vergonha de se expor, por “razões que a própria razão desconhece. ”
A lei do silêncio impera por algum mistério... Que, muitos acidentes estranhos
e inexplicáveis já aconteceram naquele trecho, onde “ela” aparece e pede
carona. Que, muitos religiosos de várias crenças realizam ali, missas, cultos,
passes espirituais e benzimentos. Que, o fato é assustador, sobrenatural, do
outro mundo mesmo.
Como se
montasse um quebra-cabeça, eu juntei algumas peças e desvendei a seguinte
história:
Na década de sessenta, um rico senhor americano comprou uma propriedade fazendo
divisa com a Fazenda Matão, município de Loanda– Estado do Paraná. Com sua
família veio morar nela. Tinha uma bela filha de dezessete anos: loira, cheia
de charme e muito mística. Algum tempo depois, ela conheceu um rapaz, o
verdadeiro amor de sua vida. Namoraram, noivaram, e marcaram a data do
casamento. Casaram-se num sábado. Dia de sol e de muita colheita... fizeram a festa
de matrimônio mais bela e requintada de que se tem conhecimento por aquelas
redondezas, até hoje. Depois dos comes e bebes, partiram, no instante do adeus
do astro-rei, felizes, repletos de amor, cúmplices da paixão, e seguiram rumo
ao doce sabor do sonho da lua-de-mel.
Ao sair da estrada vicinal, entrando na rodovia BR-376, no meio da Fazenda
Matão, o carro quebrou. Alguém parou para ajudá-los. Ofereceu ajuda e, sem
nenhum motivo, com uma chave de fenda em punho, desferiu um golpe certeiro no peito
do noivo, que caiu morto. A garota, ainda vestida de noiva, saiu correndo
gritando, pedindo socorro, desesperadamente, mas, foi tudo em vão. O assassino,
ao alcançá-la, imobilizou-a com um golpe de jiu-jítsu, e, ao amordaçá-la com
algodão, cometeu o mais bárbaro crime contra uma pessoa indefesa, estuprando a
garota covardemente. Não resistindo à brutal violência animalesca, naquele
local, faleceu. O maníaco eviscerado, friamente, como se nada tivesse
acontecido, juntou os corpos, e os enterrou numa vala, trezentos metros mata
adentro; desapareceu com o veículo dos noivos e sumiu, não deixando pistas.
Muito tempo depois, ao ser descoberta a sepultura do casal, e constatado
através de autópsia, o crime hediondo, o pai da noiva ofereceu, em recompensa,
uma fortuna em dinheiro para quem lhe trouxesse a cabeça do monstro homicida
vivo ou morto. Mas, até hoje ninguém, nem a polícia, o prendeu.
A partir desse crime trágico, a aparição da “Loira da Matão” tem sido uma
constante e um pesadelo assombroso em toda a região do noroeste paranaense.
Depois que se espalhou o boato sobre a aparição da “LOIRA FANTASMA”, a um
caminhoneiro, naquele trecho, num certo dia à noite, muitos caminhoneiros não
trafegam mais por ali ao anoitecer.
Por isso, ela ficou cognominada: “A LOIRA FANTASMA DOS CAMINHONEIROS”. O que
não a impediu de aparecer para inúmeras pessoas.
Relato de um caminhoneiro
Um caminhoneiro, que pediu para não ser identificado, jurou-me, por tudo o que
havia de mais sagrado, tê-la encontrado duas vezes, numa mesma noite. Já tinha
ouvido falar dela antes, porém, achava tudo uma lorota, uma balela, conversa
fiada; não cria na sua existência. Achava que era pura invenção do povo que não
tinha o que fazer que, inventava aquilo para amedrontar os caminhoneiros e os
furtadores de laranja à beira da estrada. Era um homem cético nesses assuntos
sobrenaturais. Acreditava que quem morria não voltava para perturbar ninguém.
Mas que, se, hoje, lhe falarem que um cachorro fala, um papagaio pensa e um
elefante toca piano, ele já não duvida de mais nada.
E
contou-me a seguinte história:
- Certo dia, eu peguei
um frete – uma pequena mudança de Marilena a Paranavaí. Entre nove e dez horas
da noite, justamente no trecho do pavor, no quilômetro cinquenta e quatro, um
pneu do caminhão furou. Era sábado, noite de lua cheia... Bonita. Parei no
acostamento e desci. Ao pôr os meus pés no chão, eu senti algo estranho, um
arrepio esquisito. Olhei instantaneamente à mata que roncava em sono profundo.
O barulho dos bichos noturnos e o chirriar da coruja ressoavam em eco de
encanto, espanto e magia. A escuridão penetrava, furiosamente, o coração da
relva virgem. Nunca tinha sentido medo de coisa alguma, no entanto, naquele
momento, fiquei transfigurado, paralisado, congelado até a alma.
Ao perceber, por entre as folhagens um vulto que vagarosamente surgia e
ressurgia do nada. Seu espírito ia se materializando... Seus olhos eram
tristes, porém verdes e encantadores. Seu rosto, meigo como o de um anjo. Seus
cabelos, longos e cor-de-mel. De seu corpo umedecido, escultural, torneado como
o de uma musa inspiradora, pingavam gotículas de orvalho. No emaranhado de
cipós deslizava-se como uma pantera e vinha ao meu encontro iradamente.
Senti-me colado ao chão, fui tomado por uma síncope descomunal. Estático, não
pude nem correr, nem gritar. O instante de perigo foi mágico! Engoli a voz,
fiquei com os olhos esbugalhados. Meu subconsciente me revelou de supetão: “É a
Loira da Matão!”. Senti instintivamente que “ela” ia me pegar, e, sem titubear,
apelei urgentemente para o meu santo protetor, São Cristóvão. Supliquei-lhe e
implorei-lhe por socorro... Fiquei aliviado e maravilhado quando voltei em mim
e percebi que tinha sido protegido por ele, quando vi aquela alma vagante sumir
como um raio mata adentro.
Recuperado do susto, troquei o pneu e pus o pé na estrada. Restabelecido,
comecei a cantarolar músicas sertanejas... Já havia andado mais ou menos uns
cinco quilômetros, quando, de repente, parei de cantar e pensei: “Aquilo foi
uma miragem, um sonho, um devaneio. Afinal, estou cansado, sem dormir desde
ontem, vida de caminhoneiro não é fácil! A gente começa a ver coisas estranhas.
Até fantasma aparece! ”convenci-me que tinha cochilado... sonhado, tido uma
alucinação, sei lá! Coisas da insônia... quem sabe? ”.
Repentinamente, olhei na estrada e vi uma linda mulher, loira, linda, daquelas
de arrepiar até a alma! Acenava e me pedia carona. Como bom cristão que sou,
diminui a velocidade do meu “garanhão”, pensei em parar e levá-la. Mas, ao me
aproximar, lembrei-me da miragem, do pesadelo, daquela coisa que tinha visto
minutos antes, e, ainda meio confuso, traumatizado, pisei fundo no acelerador e
saí na disparada... Juro que me esqueci nesse momento o meu lado caridoso.
Nervoso, liguei o rádio, acendi um cigarro e tentei não pensar naquilo.
Meu caro caçador de história, quase morri de medo, quando olhei à minha direita
e vi-a sentada ali, do meu lado, e, sem saber o que fazer – e nem sei como ela
entrou – comecei a orar e a rogar para todos os santos. Mas, nada adiantava,
ela continuava ali, como quem desejasse se comunicar. Enfurecida, ela começou a
se metamorfosear: seus olhos começaram a lampejar; de seus ouvidos, nariz e
boca brotavam algodão, muito algodão ensanguentado; de seu corpo em erupção
jorrava sangue por toda parte e exalava um odor, um mau cheiro insuportável...
Aos poucos foi se decompondo... Era coisa d’outro mundo, cara! Eu fiquei
desesperado, perdi o controle do caminhão que no asfalto derrapava num e noutro
acostamento, num ziguezague... Eu vi a morte sentada ao meu lado, fiquei frente
a frente com a feiura da morte. Nunca vi nada tão horroroso em toda a minha
vida. Sentindo que eu ia morrer, vendo a morte de perto sentada ao meu lado,
comecei a orar e a clamar por Deus, em nome de Jesus Cristo Nosso Senhor,
dizendo: Salve-me, senhor! Salve-me, senhor! Sangue de Cristo tem poder! Perdoa
os meus pecados! Eu acredito! Eu acredito em Deus!...
E, o bicho, transfigurado, como “fênix”, ressurgiu daquela coisa gosmenta,
olhou pra mim, como quem me dissesse por telepatia: Estou decepcionada. E,
imediatamente, voou pela boleia do caminhão, esvoaçante e, misteriosamente,
desapareceu na escuridão.
Depois, segui minha
viagem e confesso que, por ali, naquele trecho do medo, não passo ao anoitecer
de jeito nenhum, nem que me pague uma fazenda de café, um caminhão de dinheiro,
porque o bicho é feio, fede como gambá e é assustador... Deus que me livre!...
Ninguém merece se deparar com aquela coisa doutro mundo.
O Motoqueiro
Eu mesmo fui testemunha ocular de um momento atípico, inexplicável, e, até
cômico, engraçado: Enquanto eu entrevistava um borracheiro, por volta das dezoito
horas daquele sábado, surgiu como um furacão um motoqueiro e a sua
acompanhante, ambos estavam de cabelos em pé, trêmulos, com os olhos
arregalados e assombrados... Não conseguiam pronunciar uma palavra
corretamente. Somente alguns instantes depois a mulher parecendo um espantalho,
disse:
- Há uns dois quilômetros atrás fomos perseguidos por um ser estranho, que
flutuava ao nosso lado, e quanto mais o Caju pisava, corria com a moto, mais o
vulto nos acompanhava e nos seguia como um fogo esvoaçante. Nunca vi nada igual
em toda a minha vida. Pensei que fosse morrer!
O motoqueiro, sem graça – um negão de quase dois metros de altura – recompôs a
voz, e disse para o borracheiro:
- Cara, eu tô todo borrado, tô podre... Cagado mesmo! O que era aquilo pelo
amor de Deus! Jesus Cristo! Nunca tinha visto uma assombração em toda a minha
vida. Pensava que isso era coisa de filme de ficção, sei
lá!
Desengonçado,
cabisbaixo e resmungando muito, acrescentou, dizendo:
- Confesso, sou medroso pra caramba. Tô muito envergonhado. Mas preciso do seu
banheiro para me limpar.
Depois do banho, agradeceu... “E, com a sua garota seguiram para o bailão
em Loanda”.
O velho borracheiro, assim que o motoqueiro deitou o cabelo, me
disse:
- Essa Loira já deu muito que falar, eu já ouvi cada história sobre ela que até
Deus duvida! Mas, eu nunca tinha me deparado com um fato em que eu fizesse
parte da história dela... Eu me sinto neste momento um figurante. Mas, que o
cara se defecou todo, ah, isso defecou!
O borracheiro riu muito... E, eu também.
Direitos
autorais:
Fernandes, Osmar Soares, 1961,
A LOIRA DA MATÃO,
OSMAR SOARES FERNANDES,
São Paulo / Scortecci, 1ª edição: 1999, pág. 9 - 12
(JS2708-1000072011999)