sábado, 31 de janeiro de 2015

Atestado de óbito




Era fissurado por velório. Todo assunto de defunto e cemitério deixava Ticão fascinado. Nascido e criado no Município de Paixão Dourada, ele morava no distrito do Cintra do Rio Vermelho, nas proximidades do cemitério.  Trabalhava na prefeitura, na Secretaria da Assistência Social. Sua função era assessorar a família enlutada e prestar toda assistência ao funeral.
Era dele o projeto de doação de caixão de defunto popular ao pobre, desempregado e aposentado de baixa renda.
Todo mundo o procurava quando morria um amigo, um vizinho ou um parente pobre.  Por isso, ficou cognominado de “O homem do atestado de óbito”.  Sua simples presença denunciava que a morte rondava por perto.
Muita gente dizia que ele cheirava defunto. Dessa forma, Ticão tornou-se um homem desprezado por muitos, e passou a viver alheio a festas. De certa forma, alheio ao mundo. Sua vida resumia-se em cuidar de velórios e limpar as catacumbas, organizar a documentação de cada morto... Ele sabia tudo sobre cada um: a causa da morte, os parentes, o número de seu túmulo, enfim sabia, tintim por tintim, da vida à morte de cada corpo ali sepultado.
 Não dava bola para o falatório que dizia que ele era o tutor da morte, o homem das mil faces do além; O “sombra” da morte. Enfim, havia muito comentário envolvendo o seu nome. Mas ele não se incomodava. No dia de finados era muito solicitado para indicar aonde estava à catacumba do fulano, do sicrano, e sentia-se feliz com esse serviço. De vez em quando ele dizia, brincando, para um e outro:
- Você vai ser o próximo! Respeite-me para que eu possa cuidar do seu túmulo com carinho.
Muitos respondiam:
- Sai de mim sombra da morte!... Vai gorar outro! Deus que me livre!
Certo dia, depois de uma longa jornada de trabalho, Ticão havia acabado de chegar do cemitério, após lidar com defuntos e sacudiu a terra sagrada dos pés. Deitou-se no divã e tirou um cochilo... De repente, acordou assustado, de cabelo em pé, e sua mãe, vendo-o desfigurado, disse-lhe:
- Ticão, o que foi? Parece que viu um fantasma!
Restabelecido, ele respondeu:
- Mãe, eu tenho que voltar ao cemitério. Corrinha veio no meu sonho e me disse que está vivinha da silva... Que sofreu uma catalepsia. Ela não está morta! Ela está viva!!!
Sua mãe, assustada, disse-lhe:
- Credo Ticão, não brinque com essas coisas, não!  De tanto lidar com essa gente morta, você está ficando louco. Já ta vendo coisa.  Eu, hein! Eu a vi mortinha...  Passei a noite toda velando o seu corpo. Aquela alma partiu dessa para melhor. Pode ter certeza disso.
Mas, Ticão, retirando-se da sala, resolveu seguir a sua intuição e foi de imediato ao cemitério para conferir... Ao chegar lá, Desenterrou a mulher do padeiro, seu amigo, Caqui, que estava sob efeito de calmantes... Constatou o milagre da vida, e levou um tremendo susto.
 O padeiro era apaixonadíssimo por sua esposa. E havia dito no velório que sua vida não tinha mais sentido. Sem ela tudo era nada. O mundo perdera a graça. Que iria se suicidar.
Ticão,  apesar de ser destemido, ficou embaraçado com aquela situação. O coração da mulher batia acelerado... Ela estava viva... E, ele pensava: “E agora, o que vou fazer?! A mulher ta viva!... Meu Deus!!! Nunca me aconteceu um caso desses... Ajude-me, conduza-me, Senhor!”
Não pensou duas vezes... Tirou a mulher dali, fechou o caixão e o enterrou novamente. Levou-a para sua casa... Entrou nas pontas dos pés para não chamar a atenção de ninguém. Deitou aquela bela mulher na sua cama e respirou aliviado. Flertou um pouquinho medindo aquele corpinho esguio de cima a baixo, e pensou: “Que desperdício... Uma coisa linda dessa ia servir de adubo. A morte tinha feito um estrago no meu coração...”.
Ao chegar na cozinha para tomar um pouco d’água, sua mãe, desesperada, disse-lhe:
- Aonde você estava meu filho? Todo mundo está lhe procurando feito doido. Já veio um montão de gente atrás de você. Aconteceu uma desgraça na cidade!
Ticão, que já não se assustava com mais nada, disse à sua mãe que se acalmasse. Ele já havia visto tanta coisa ruim na vida, que nada mais o surpreenderia. Então, sua mãe, disse-lhe:
- Sente-se para não cair! O padeiro deu cabo à própria vida!  Deu um tiro no peito que varou do outro lado... Morreu na hora. Deixou um bilhete dizendo: “Ninguém me condene. Fiz isso por amor. Eu amo Corrinha!!! Sem ela, eu não tenha por que viver. Eu sei que vou estar bem do seu lado...”.
Ticão levou as mãos à cabeça e disse:
 - Meu Deus, que idiota! Suicidou-se à toa.
Seu irmão, que estava de pé arrumando o cabelo de frente para o espelho, disse de supetão: “Se perdesse uma “gata” daquela, também me mataria!”
Ticão adentrou o seu quarto e viu a bela ex-defunta dormindo como uma anja. Pensou num estalo: “Agora é viúva e vou cuidar de você com amor e carinho.”
 Ninguém nunca soube, mas, ela era a sua paixão secreta; seu amor platônico. Com o suicídio do marido, o caminho agora estava livre. Era uma questão de oportunidade e tempo.
Ao virar as costas para deixar o quarto, ele ouvira resmungando:
- Onde estou? O que aconteceu comigo? Que coisa! Parece que estou moída, um bagaço, no pó da bagaceira... Que preguiça!
Ticão, ao ouvir aquela voz doce, virou-se de repente e disse:
- Oi, tudo bem?  Que sono profundo! Dormia como um anjo.
Ela, ao reconhecê-lo, tomou um susto danado, arregalou os olhos e disse:
- O que estou fazendo aqui? Eu morri? Diga-me, por favor?!
Ele ficou sem graça e lhe disse baixinho:
 - Tenha calma, você sofreu um desmaio, mas já está tudo bem.
Ela insistiu com aqueles lindos olhos azuis, e disse:
- Pelo amor de Deus! Não me diga que aconteceu uma desgraça? Cadê meu lindinho? Chame-o agora!... Por favor, Tição?!... Onde está o amor da minha vida?
Ele coçou a cabeça sem saber o que fazer e nem como falar, respirou profundamente, e disse:
- Corrinha, você está na minha casa, dentro do meu quarto, deitada na minha cama... Ao mesmo tempo aconteceu um milagre e uma desgraça.
Contou-lhe como ela veio parar ali e o motivo do suicídio do seu amado. Ela começou a chorar desesperadamente, e saiu com ele rumo à sua casa.
Por onde passavam as pessoas se assustavam e foi um tremendo corre-corre... Uma grande confusão. Do meio da multidão, enfurecida e medrosa, ouvia-se a voz de João Grilo que dizia:
- Mas, ela não morreu?! Valha meu Deus!!! É um fantasma!
 Nas ruas, pedestres trombavam-se; os carros colidiam-se; foi uma loucura... Gritos de “socorro!” ecoavam pelos quatro cantos da cidade.
Mas o pior ainda estava por vir... Quando ela se aproximou de sua residência, que estava lotada, muita gente chorando e lamentando a morte do padeiro....  O povo, ao vê-la, saiu correndo, gritando e desmaiando... Ticão não sabia o que fazer. O povo ficou doido e corria para todo o lugar desordenadamente.
Até o caudilho da cidade, que tinha fama de homem valente, ao vê-la, saiu em disparada como uma mula sem cabeça, gritando:
- Valha meu Santo Expedito!  O que é isso!... Tem piedade de mim!
Restaram somente a ex-defunta, o padeiro dentro do caixão gélido e desconfortável e o Ticão, que tratou de velar o amigo e a chorar consternado – fato inédito – ao lado da viúva. Aos poucos alguns corajosos chegaram para se despedirem do amigo morto também.
Entre um cafezinho e uma prosa, a história da ressurreição de Corrinha foi se esclarecendo... Sua catalepsia foi sendo explicada, comentada e compreendida por um e outro. Aos poucos  a notícia foi chegando aos ouvidos da população, que passou a  entender o que era isso, que era possível tal acontecimento, apesar de ser  fato raro. O povo certificou realmente que ela não era um fantasma como se pensava e temia.
 Ticão tomou todas as providências para o sepultamento do amigo padeiro... Ficou atento às palavras da viúva, que, lia em alta voz o bilhete do suicida, na hora do adeus final...  E, desesperadamente, gritava:
- Eu te amo, meu amor! Vá com Deus!
Passado algum tempo, Ticão pediu a sua mão em casamento, que, sem pestanejar aceitou... Tiveram filhos e filhas e eles viveram uma vida normal, modesta e feliz.


“Ticão é meu amigo e essa história tem uma “pitadinha” de verdade e ficção também...”
                                                                               O autor.
Professor Osmar Fernandes
Enviado por Professor Osmar Fernandes em 01/08/2009
Código do texto: T1731293

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