sábado, 31 de janeiro de 2015

Praga de mãe



Seu Osmundo trabalhava no sítio como meeiro. Naquela segunda-feira fria do mês de junho, as cinco da matina, já com as tralhas na mão, disse à sua esposa, Josefa:
- Mulher hoje to com desejo de cumê uma galinhada com arroz, bem gostosa! Amanheci com essa vontade tola, besta. Se não for dá muito trabalho, escolha a galinha mais bonita do terreiro e faça aquela bóia.
Dizendo assim, partiu pra roça.
Dona Josefa foi ao terreiro, e escolheu a melhor galinha, a mais gorda e bonita, e muito feliz, foi realizar o gosto do seu homem.
Fez uma galinha com arroz de “dar água na boca” de qualquer um.
 Na roça se almoça cedo. A “bóia-fria” é saboreada por volta das nove ou dez horas da manhã.
Dona Josefa chamou o filho Akira, e o mandou levar a marmita do pai.
O menino, com ela na mão, subiu o morro. Seu Osmundo estava lá no topo plantando... Já morto de fome.
O cheiro do tempero daquela comidinha caseira, quentinha, fez o garoto de dezesseis anos, parar no meio do caminho, e comer toda a carne com voracidade e gula, deixando os ossos da galinha misturados com o arroz.
Notando de longe o filho se aproximar, o matuto ficou feliz, e, mesmo ainda distante, já sentia o cheiro gostoso do coentro, da salsa – a mão santa de sua velha e adorável senhora.  Sua barriga roncando, denunciava muita fome. A marmita saborosa chegando o deixou mais faminto.
Ao entregar a marmita para o pai, o moleque, meio desconfiado, ficou de lado, arredio, e, o matuto ao abri-la, levou um susto, e disse:
- O que é isso? Sua mãe ta doida?! Me mandou sobra de comida?
Akira, assustado, avermelhou-se, e de repente, disse:
- Não sei não, pai...
O filho, vendo a aflição do pai, que era bravo, de repente, sem pensar, falou:
- Olha pai, a mãe estava estranha hoje, muito afobada. Gritou comigo e pediu para eu vir logo, querendo se vê livre de mim, e ainda disse para eu não voltar tão cedo. Daí eu vi, lá debaixo das mangueiras, um fulano mal encarado.  Ele não me viu, mas eu o vi. Não sei quem é, só pude ver que é homem feito. Vi ele entrando em casa com a minha mãe.
O velho trabalhador ficou maluco, irado. Jogou sua marmita com ódio no chão, cuspiu fogo, deu uma escarrada no mundo...  Deu um empurrão no menino, pegou sua foice e partiu aos gritos pelo caminho, dizendo:
- Vou matar essa vaca. Não sou homem de levar “chifre”, não sou touro! Não sou jumento! Nem mula sem cabeça! Nem burro eu sou!!! Não me casei para ser corno!!! Essa desavergonhada me paga!
A coisa ficou azeviche. A cada passo o homem imaginava sua mulher deitada, fornicando com um ou outro sujeito. Não se conformava. Tinha tanta confiança nela.
Perguntava-se enfurecido: “Por quê? O que é que eu fiz de errado, meu Deus? Será que eu atirei pedra na cruz? Isto não é um casamento... É um cagamento.”
Bateu várias vezes na sua cara, dizendo:
- Homem que é homem tem que ter vergonha na cara! Essa vagabunda me paga!!!
De repente, ele olhou para trás e gritou:
- Vem moleque! Corre!  Hoje você vai ver como um homem deve agir com uma vaca, vagabunda, que trai o seu homem.  Mulher que desrespeita o marido merece morrer. Vem!
Ao chegar em casa, foi entrando e, gritando, pegou a mulher pelos cabelos longos e negros – e sem lhe dar tempo de falar algo – desferiu-lhe um golpe fatal no seu pescoço e disse:
- Isso é pela sua traição sua vaca imunda! Mulher minha não se deita com outro, e não fica viva para contar a história. Ainda, descaradamente, teve a coragem de me mandar aquele sobejo – o resto... Quem sabe era a sobra do seu amante, né sua peste? Seiscentos mil diabos!!! Onde ele está vagabunda, fala?!
E o homem, cego de ódio, saiu loucamente à procura do suposto amante da esposa.
Dona Josefa, que, antes desta desgraça, estava trabalhando contente, cantarolando, feliz por ter feito o gosto do marido – seu prato predileto – agora agonizava, olhava para o seu filho, na ânsia da morte, pressentiu o mal que ele havia cometido; o falso testemunho que tinha levantado; e já no último suspiro, disse-lhe:
- Meu filho! Meu filho! Por que fez isso comigo?  Coração de mãe pressente as coisas. Por esta desgraça, por sua calúnia, seu pai me feriu de morte, estou morrendo por sua culpa. Porém, sua vida será triste, sem luz, e todo o dia de sua vida, na hora da fome, sentirá o maior desejo de comer a minha galinha com arroz. Ma, Infelizmente, vai comer grama... Vai pastar como uma vaca.  Você vai me pedir perdão inúmeras vezes. Mas, somente Deus vai poder te julgar... E se lembrará da inocência de sua mamãezinha para o resto de sua vida infeliz. E, lhe digo ainda que, e esta praga nem a morte te libertará.
E, balbuciando essas palavras, expirou.
Seu Osmundo catou uma mala velha, colocou algumas peças de roupas e fugiu, virou andarilho. Ninguém nunca soube do seu paradeiro.
O seu único filho, o primogênito, sem saber o que fazer, com medo, fugiu também, saiu pelo mundo errante, sem eira nem beira.
A família e os vizinhos se encarregaram de fazer o enterro de Dona Josefa.
Akira, como Caim, foi fugitivo e vagabundo pela terra... Ele passou a andar de cidade em cidade e, na hora da fome, sentia aquele cheiro gostoso do tempero de sua mãe.
Entretanto, como praga de mãe pega, pastava em terrenos baldios como um animal. Em datas abandonadas, andava de quatro – como um quadrúpede – imitava os gestos de uma vaca, babava ao saborear o capim, o colonião, etc. E, assim passou o resto de sua vida.
Muita gente ficava abismada ao ver um rapaz jovem, bonito, e vegetando daquele jeito.
Uma bela menina, rica, vendo-o, gostou dele, e lhe disse o seguinte:
 - Moço, por que você pasta como um animal? Isto é repugnante. Venha comigo, meu pai é fazendeiro, arrumo-lhe serviço, um bom salário, e você larga dessa vida desumana e desagradável.
Recomposto, já havia pastado, estava de bucho cheio, sua cor esverdeada, rosto marcante e bem feito, pálido, olhou à moça bonita, uma lágrima rolou de sua face suja de grama mastigada, e respondeu:
- Não, não posso aceitar não! Sou um desgraçado caluniador. Levantei um falso testemunho há três anos atrás. Disse ao meu pai que minha mãe estava com outro homem. Porque eu comi a sua bóia, uma galinha com arroz, o prato favorito do meu pai. Fiquei com medo de apanhar, levar uma surra. Ele era muito bravo. Degolou minha mãezinha querida.  Estou pagando o meu pecado. É praga de mãe!  Nem a morte me salvará.  Vou pedir perdão a ela até o último momento de minha vida. Eu procuro a morte, ela foge de mim.
E falando isso, foi saindo de fininho e desapareceu. Naquelas bandas ninguém mais o viu.
Por onde passava era motivo de chacota da molecada, que judiava dele jogando pedras, atiçando-lhe o cachorro...  E assim, foi triste a sua sina.


“Praga de mãe, pega! Logo, respeite-a com muito carinho e amor. Ou poderá enfrentar uma praga para resto de sua vida.”
Professor Osmar Fernandes
Enviado por Professor Osmar Fernandes em 03/03/2009
Reeditado em 09/05/2009
Código do texto: T1466448

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